quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Doze Mãos: Cap. 3 e 4


Capítulo Três

De posse da informação saí para dar umas voltas. Precisava dar uma arejada e uma pensada sobre tudo isso. Incrível como aquilo que parecia dizer nada poderia mudar tudo. Claro que aquilo poderia ser efeito da canha também. Não sei, não estava em plenas condições, ainda não havia arejado o bastante.
Andei horas e horas pelas ruas, nada mais parecia fazer sentido. Resolvi, então, reler os dois primeiros capítulos de minhas anotações, mas continuei sem entender nada. Que porra é essa de Hechú? Por que raios ela resolvia entrar em minha vida dessa forma?
Em casa, abri uma garrafa de um gim de baixíssima qualidade que havia achado no armário e deslizei em direção a um sofá antigo que possuía na sala, era um pagamento de um antigo trabalho. Tinha que parar de trabalhar para gente sem dinheiro.
Bebi tudo que restava na garrafa e reli várias vezes minhas anotações. Quem são esses tais de “sinhô richard” e “fred”? E a tal torrada, teria o rapaz trazido ou não? E por que diabo continuava a falar como se fosse um detetive daqueles filmes antigos. Tudo era muito confuso. Devia estar com algum tipo de amnésia.
Entediado sai de novo para a rua, fui dessa vez para uma praça próxima ao meu escritório e sentei-me no primeiro banco que vi pela frente. Sentia-me leve, era o gim que iniciava o seu efeito. Comecei então a observar todos que passavam por ali. Com a sutileza de um velho broxa num puteiro, não deixei um vulto borrado passar alheio, diante dos meus olhos. Foi quando a vi. Que bela era aquela mulher. Mesmo com todo o meu poder avaliativo de gambá, podia - sem sombra de duvidas - afirmar que ela era linda. Passou por mim com pressa, e nem pareceu notar que a estava observando com olhares lânguidos e apaixonados. Resolvi que deveria segui-la até o inferno, ou qualquer outro lugar mais apropriado que ela resolvesse ir.
À passos largos e cambaleantes tentei acompanhá-la, a moça era rápida, tinha coxas grossas e esguias que quando corria por aquela ruas horrendas em que nos encontrávamos a faziam parecer com uma gazela.
Algumas vezes olhava para trás e dava a impressão de notar a minha perseguição, mas estava com tanta pressa que parecia não se importar. Por outras vezes, perdia seu rastro, mas aquele perfume barato que usava, com um cheiro que lembrava doce de manga azeda, especialidade culinária de minha avó, o qual por sinal eu odiava, me fazia encontrar seu paradeiro novamente.
Depois de uma exaustiva perseguição, me vi diante de lugar do qual deverei me lembrar eternamente: “Inferninho da dona Yvone”, ou melhor “Mrs. Yvone’s little hell” como estava escrito na placa. Sem um mínimo pingo de receio, e de sensatez também, pois o gim havia retirado tudo aquilo que ainda restava de sensato em meu corpo, resolvi entrar.
Que lugar interessante era aquele. Nunca tinha visto nada igual. No chão havia um carpete vermelho - com algumas manchas que não conseguia decifrar o que eram e o que significavam -, elas faziam o contorno da entrada até o bar. No meio de tudo estava a pista de dança, toda decorada ao estilo “embalos de sábado à noite”. O ambiente - todo decorado com plumas e manequins vestidos com roupas exóticas, que iam de vestidos do tempo da coroa a modelitos de couro ao melhor estilo sado-maso - transmitia uma sensação de aconchego. Esse clima era ainda mais acentuado por diferentes mulheres que perambulavam pelo recinto, eram de todos os tipos: gordas, magras, altas, baixas, loiras, morenas, asiáticas, as únicas coisas que possuíam em comum eram seus trajes seminus e feições que faziam o próprio capeta sentir medo de encará-las por alguns minutos.
Não achei quem procurava, resolvi então ir até o bar pra ver se me recompunha de tudo aquilo que meus olhos estavam a observar. Pedi um refrigerante com cachaça - precisava me recompor da bebedeira -, e naquele lugar só havia cachaça e um wiskey que mais parecia ter saído da rola do garçom.
Quando o garçom veio me trazer o meu pedido, tomei coragem, olhei-o nos olhos – para intimidar esse tipo de pessoa você têm que olha-la nos olhos e fazer cara de macho, para ela não pensar que você ta dando em cima dela – e com a força de um leão alcoolizado disse:

- Você conhece uma tal de Srta. Hechú?


Capítulo quatro

O garçom suspirou. Acho que não sou o primeiro a fazer essa pergunta.
- O senhor realmente... – suspirou - de novo, não.
Fiz cara de interrogação. Não uma expressão de ‘o quê’, meu rosto se torceu em gancho. Bebida ruim paca, choque de retorno pior.
- Escute – disse o garçom – qual o seu nome?
Tentei manter um silêncio misterioso. Mais três segundos. Dois. Um.
Foi só quando abri a boca para responder que descobri: não sabia.
- Se eu pudesse dar uma opinião, diria Henrique.
- Sim – eu disse – Henrique, soa muito familiar.
- E o nome do meio é Dias.
- Sim – eu repeti – Dias, não parece errado.
- E o sobrenome é Huinz.
- Meu Bog, homem, você é adivinho!
- Não, senhor. O senhor vem aqui toda semana, bêbado como universitário duro em festa de bar aberto. Seu nome é Henrique Dias Huinz, geralmente acompanhado por um narigudo que lhe paga todas.
- Bêbado? Mas... eu sou um revolucionário, embora trabalhe disfarçado como instrutor de armas da Nova República, e...
- Não – me interrompeu novamente o garçom. Só agora eu conseguia ver a sua face com clareza. O nariz dele, sim, era uma interrogação, em todos os sentidos da palavra.
- Não? – perguntei, na verdade concentrado no nariz estranho, mas logo me recuperando – Como, “não”? Sou um revolucionário, à noite. Tenho alguns companheiros, me incomoda depender deles, é verdade...
- Não. O senhor é parente de um membro de alto escalão do governo. Tem acesso a todo tipo de informação, e amigos que lhe pagam bebida. Uma combinação perigosa.
- Então... é tudo mentira? A revolução silenciosa, a Nova República, os dias de labor interminável do povo sem esperanças, a superpopulação, o sexo programado, tudo? Sou um costas-quentes sonhando que vive num futuro de ficção científica?
- Não, senhor. A Nova República realmente existe, a revolução existe, os dias de labor interminável também, bem como a superpopulação; e – fez uma pausa enquanto fazia um sinal de que estava ouvindo para outro cliente que fazia um pedido – bem, o sexo programado sempre existiu. Chamava-se prostituição, você sabe.
- Ótimo – eu disse – Melhor delirante no cenário certo do que delirante completamente perdido.
O garçom riu, tirou uma nota de 500 do meu bolso, se aproveitando do fato de que eu estava sentado sobre minhas mãos há 15 minutos sem perceber. Levantei. Movimentei os braços. O sangue voltando a correr me fazia sentir algo bom. Achei que podia caminhar um pouco, até a rua.
Doce ilusão. No terceiro passo, lembrei da Hechú. O que seria? Enquanto me perguntava, as pernas pararam de responder, embora não ao mesmo tempo. O resultado da confusão mental foi um belo vôo livre, embora razoavelmente mais curto para o padrão esportivo, e sem o benefício de um pára-quedas.
Fui arrastado até o balcão do bar por alguma alma caridosa, que me cobrou apenas gratidão e um relógio. Ali sentado, decidi esperar pela consciência, embora soubesse que ela trazia também a dor – de cabeça e corporal.
Uma série de flashbacks abateu-se sobre mim, tal qual roupas íntimas femininas sobre uma banda do século XX no auge da carreira. Vi a mim mesmo, sentado ao lado do espelho, conversando com duas pessoas. O narigudo, seu nome, agora me lembrava, era Ruy. O segundo homem era meu reflexo no espelho. Bog... há quanto tempo eu estava bêbado?
Vi Ruy levantando-se e tirando sarro de minha comida. Vi a mim mesmo tentando telefonar, a princípio fazendo carinho no telefone, para convencê-lo a cooperar, e depois teclando repetidamente o mesmo número para vencê-lo pelo cansaço.
Vi a minha figura sair do prédio após alguma discussão idiota. Vi a mim mesmo entrando em um tal de bar Sinhô Richard, onde fantasiei algumas conversas, e obviamente, enchi a cara. Vi a mim mesmo sendo fisgado por aquela linda mulher e atraído até aquele lugar. Vi a mim mesmo caindo por não conseguir controlar os próprios passos. Vi a mim mesmo, sentado, vendo muitas coisas. E o flashback parou por aí, pois eu já não estava tão certo se estava melhorando ou piorando da bebedeira.
Uma mão tocou meu ombro. A mulher. Linda. Me chamou pelo primeiro nome. Sotaque francês.
- Enrric? – disse.
- Pode ser agora – disse eu, milhas à frente na conversa. Ela aparentemente entendeu.
Saiu, rebolando dentro das vestes apertadas. Fui atrás, seguido de todos os olhares masculinos no recinto. A inveja deles era meu... não consegui fazer uma relação convincente. Desisti do raciocínio, mas ainda assim era bom saber que eles sentiam inveja.

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