sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Doze Mãos: Cap. 9 e 10

Capítulo nove

Entramos no meu apartamento e ela me disse que deveríamos pegar o que fosse importante e sairmos rapidamente dali, pois este seria o primeiro lugar aonde viriam nos procurar. Peguei meu revólver bucal, alguns documentos que julgava serem importantes e descemos as escadas do edifício até a garagem, onde estava meu carro. Entramos e saímos rápido. Como estava debilitado pelo espancamento e pela bebida, ela fez questão de dirigir. Seguia em direção aos limites da cidade, disse que deveríamos passar a noite fora desta e que conhecia um esconderijo perfeito para passarmos a noite.
Estava exausto. Minha cabeça doía da bebida e, principalmente dos golpes que sofri durante a tortura. Meu corpo estava dolorido, mas não consegui tirar da mente aquelas perguntas que surgiram no momento em que nos beijamos. Imagens minhas fazendo sexo com aquela linda morena vinha em minha mente. Não sabia se eram lembranças, fruto da minha imaginação ou apenas delírios devido ao cansaço e as dores do espancamento. Notei que ela tinha cabelo longos e ondulados, olhos verdes, seios volumosos e firmes. E a cada constatação minha excitação tornava-se maior. Não pude evitar o calor que senti na virilha. Minha calça pareceu ter encolhido.
Ela me olhou e percebendo algo diferente em mim, disse – Meu nome é Carla. Sei que você sofre lapsos de memória, mas tinha esperanças que se lembrasse de mim... -.
- Desculpe-me, mas não lembro de você!
- Você disse que nunca iria se esquecer de mim. Disse ela num tom lamentoso.
- Perdoe-me, mas realmente não lembro. Gostaria muito de lembrar, mas não lembro.
- Agora isso não importa! O importante é que te encontrei!
- Você não sabe o quanto estou feliz por você ter me encontrado! Sorri para ela.
- Também estou muito feliz! Retrucou ela, com um sorriso maroto.
- O quê aconteceu lá no bar? Perguntei a ela.
- Era tudo um plano para desestabilizar a Nova República.
- A Revolução Silenciosa existe mesmo?
- Existe, assim como a Nova República da qual fazemos parte.
- Eu faço parte da Revolução e da Nova República ao mesmo tempo?
- Exatamente.
- Como isso é possível?
- Como disse Lampedusa, em O Leopardo sempre quando não quero mudar nada eu mudo alguma coisa. Não me lembro se é bem assim. De forma que este regime do qual fazemos parte se ocupa da revolução e da contra-revolução.

Eu ouvia as palavras de Carla, que me pareciam arredondadas e distantes, se perdendo nas curvas de seus seios, como vento em bosques de álamo1.

- Ruy é um revolucionário que acreditou no seu disfarce. Através de você nós agora sabemos que ele confiou-lhe uma superbomba capaz de explodir Novíssima Yorque.
- Quem eram aqueles capangas que me torturaram?
- Agentes do governo, quem mais poderiam ser?
- Mas eu também sou um agente do governo!
- Achamos que a Pseudo-Revolução ficaria mais convincente se nenhum dos oficiais (além do supremo presidente) soubesse.

- Quem ou o que é Hechu, afinal? E porque Ruy, um revolucionário revolucionário, travestido de loira linda me levaria para uma armadilha? Armadilha onde eu, um revolucionário reacionário, seria torturado por agentes do governo reacionários reacionários? E porque eu seria resgatado por Ruy logo em seguida? E porque seria interrogado por ele a respeito de... A respeito do que mesmo?
- Não sei. Você não se cansa disto tudo? Pobre Henrique Dias Huinz! Chega a acreditar nos papéis que representa. Sinto arrepios no coração quando imagino por um momento sua memória atormentada, fragmentada, estruturada em flashbacks sem lógica. Nosso destino parece estar sendo escrito por um bando de estudantes de publicidade que não tem mais o que fazer.
- Eu me lembro do tempo em que ainda existia publicidade...

1. Árvore da família das Salicáceas, muito comum em regiões úmidas da Europa e América do Norte, cuja madeira era utilizada em rituais mágicos, especialmente o Álamo Branco e o Álamo Negro. Árvore preferida da Seita dos Escritores de Notas de Pé de Página.

Capítulo dez

Carla estacionou o carro em uma choupana próximo das montanhas. Ali passamos dias felizes vivendo apenas da caça do arminho2 e fazendo sexo sob a luz do luar. Nadávamos nus no leito de um riacho não muito distante. Por quase três meses esqueci de meus tormentos naquele lugar paradisíaco.
Até que um dia resolvemos abrir compotas que julgávamos há muito perdidas. Carla parecia entusiasmada naquele final de semana:

- Comida nunca estraga, o fogo é que ainda não está alto o suficiente.

Uma série de flashbacks abateu-se sobre mim, tal qual roupas íntimas femininas sobre uma banda do século XX no auge da carreira. Lembrei-me de Ruy de sua bomba, da procura por Hechu, e do código. Sim era isso que Ruy queria naquela noite em que me interrogara acompanhado de Fhreddi.

2. O arminho é um mamífero carnívoro mustelídeo de pequeno porte. Há 38 sub-espécies de arminho, classificadas de acordo com sua distribuição geográfica. Sacrificado em rituais da Seita dos Escritores de Notas de Pé de Página.

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